Lá se vão quatro
anos. Um tempo curto pra tanto carinho que a gente tinha um pelo outro. Mas um
tempo enorme dentro na alma, que ficou machucada, sem volta, pelo susto, a
perda, a saudade, a dor que sempre dá aquela agulhada no peito, cada vez que
alguma cena, alguma imagem, algum fato do cotidiano me levam até ti, meu irmão
sonhador.
Te chamo assim,
porque sempre te percebi assim. Foste um sonhador na infância: uma vez, aos
seis anos, teimaste em criar chamas no fogão à lenha, usando álcool... Querias um
fogo rápido, e queimaste o rosto todo... Sim, era coisa de criança, travessura
de menino, mas eu recordo aquilo como um gesto corajoso de irmão mais velho,
que inventava coisas e (quem sabe?) que sabia fazer mágica.
Adolescente,
sonhaste ter a moça mais prendada do Santa Catarina: bonita, inteligente, líder
do grêmio estudantil. Sonhaste e foste atrás. Fico tão feliz de ter participado
desse sonho: fui mensageira, pombo-correio, e até hoje estremeço de emoção ao
recordar a cartinha escrita à mão, no bolso da minha japona lilás (sim, nossos
casacos de inverno se chamavam japona),
com a declaração de amor, o convite, que eu levava pra Tita, lá no Santa.
Jovem de 18 ou
20 anos, já sonhavas com a revolução. Divergimos. Eu tinha lá meus sonhos de
amar e ser amada, e isso era pra mim o mais importante naquele momento. Um guri
norte-americano veio a ser meu namorado. E, é verdade, eu via essa experiência
única ser ameaçada pelo teu olhar, que sonhava pra mim outras coisas, outro
homem, quem sabe um cara de esquerda, mesmo que fosse aquele ex-padre maluco da
Espanha, que me apresentaste... Porque americano não dava: Ianques, go home!!!
Escondeste por
uns dias, no sótão do nosso arcaico casarão em Novo Hamburgo, uma moça (uma
guerrilheira?), e aquilo me fascinava, meu querido irmão: tu eras muito sério,
lutador, querias um mundo transformado, em que a burguesia deveria ser, como
dizias, reduzida a pó: Sonho com uma
jamanta enorme passando por cima desses boyzinhos perfumados, com seus carrões
milionários... Até hoje eu tenho que sorrir, sozinha, recordando essa
imagem, que voltaste a usar muitas vezes, por anos e anos, cada vez com um alvo
diferente (os caras da ARENA, os radicais-sem-noção de certas alas de esquerda,
as pessoas que jogam lixo na rua, professores injustos com os alunos, políticos
que não entendem nada de escola e resolvem inventar regras para a educação, e
assim vai): jamanta neles! Óbvio, nós dois não somos partidários da violência,
nunca fomos. Mas uma jamantinha...
Sonhaste aprender
mais, e te aventuraste, com Tita, Gu e Ina, a viver nos Estados Unidos, no
final dos anos 70, e abriste a cabeça, viste um mundo em que as lutas sociais
iam além das conquistas de ordem econômica: pela primeira vez sentiste de perto
a dor da discriminação de negros, de gays e lésbicas, em Stanford. Aprendeste a
sonhar com eles. Acrescentaste mais motivos às tuas próprias lutas. E sonhaste
novos sabores, inclusive na cozinha; na tua volta, eras um homem refinado, que
sabia de um bom vinho, de um bom prato, e que nos mostravas em inglês novos
autores, filósofos, antropólogos, gente da sociologia... Acho até que,
retroativamente, me perdoaste o namorado ianque aquele...
Os sonhos se
ampliavam, se tornavam cheios de graça e de uma vida cada vez mais plena.
Estive muito
tempo longe, no Rio de Janeiro (do final dos 70 ao início dos 90), mas cada
vinda a Porto Alegre, com minhas filhotas Jane e Raquel, era também um belo
momento de te escutar e, claro, de saber de teus novos sonhos. Nos anos 80, te
acompanhei, tu bem de perto sabendo de tudo sobre a criação do PT, do teu
entusiasmo com uma prefeitura em que, sonhavas, se poderia fazer uma educação
de verdade, pra todos, criativa, poderosa. Estive na tua posse como Secretário
de Educação, e não esqueço teus olhos, o brilho feliz que ali se mostrava. Era
como se dissesses: Meu sonho maior agora
vai, vai, vai acontecer. Fizeste muito em tão pouco tempo por lá, mas
chegou o momento de dizer basta. Ah, uma jamanta...
Isso então
mataria as utopias queridas do meu irmão sonhador? Claro que não. No Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, foste o exemplo mais acabado do
professor-administrador-sonhador. Cada funcionário dali do Pós amado por ti era
único para ti. Ninguém jamais foi massa para esse mano sonhador. Uma palavra
para este aqui, gremista, uma palavra de gozação carinhosa, do colorado
vermelho até o fundo de sua alma. Outra palavra para aquela ali, que tinha uma
mãe doente e precisava de escuta. Mais uma palavra lá, para aquele aluno que
não conseguiu terminar a tese a tempo. E ainda outra aqui, para o professor que
temia chegar a hora de se aposentar. Para todos, a escuta. Para todos, o
coração inteiro. Para todos, a energia que plantava novos sonhos: sim, a ideia
era essa mesmo, a de que outro mundo era
possível.
Teus orientandos
guardam até hoje emails que escrevias de madrugada, nas tuas insônias (que eu
sempre compartilhei contigo...): naquelas mensagens, o incentivo permanente,
uma gana de viver e de convidar o outro a viver, a não desistir, a criar e a
imaginar uma educação digna. Nas tuas palestras, aquele texto que por vezes se
perdia em mil elucubrações, que abria mil arquivos diferentes, que podia até
confundir a plateia, mas que era tão denso como palavra propositiva: sonho que
quer chegar-a-ser.
As pesquisas que
fizeste eram todas de intervenção: pesquisa-ação. E teu coração estava inteiro
com as margens. As margens da sociedade. Aqueles que se diz que são menos. E para quem, de fato, há menos, se faz menos. Foste lá trabalhar com eles, na Escola Municipal Alberto
Jorge, especialmente no Galpão Rubem Berta, com os associados da reciclagem
ecológica. Lembro da tua felicidade ao antecipar relatórios da tua pesquisa,
quando me contavas os sonhos das mulheres recicladoras do Rubem Berta: o que
elas desejavam para si e seus filhos era parte radical dos teus próprios
sonhos.
Calorento que
eras, imaginavas no verão uma enorme pedra de gelo, em que poderias te sentar e
dizer aaahhhh, num adeus aos dias
mormacentos de fevereiro, mês do teu nascimento. Mas não deixavas de lado um
ativismo positivo, que poderia ser uma passeada pela feirinha ecológica do Bom
Fim aos sábados – parando em cada barraca e tendo na ponta da língua mais uma
novidade a comentar com o produtor rural, sobre uma agricultura de boa qualidade
para todos. Sonhos, sempre os sonhos, que te faziam olhar para os bueiros
cheios de lixo e as poças d’água após um chuvarão de janeiro, e comentar com a
mana Vera Lúcia, arquiteta urbanista: Tem
solução, tem jeito. A Prefeitura
poderia fazer um meio-fio diferente, o asfalto poderia ser de outro material,
como é que ninguém pensa nisso?
Em dezembro, a
40 graus, suando a não mais poder, tu embarcavas no sonho das crianças do Biba,
aquelas da Associação de Peito Aberto: foste para elas o Papai Noel mais amado,
que em nenhum momento lembrou do forno que era aquela fantasia. Sim, pois
fantasias são matéria de sonho, e sonho bom não tem dor, não tem desconforto:
só calor de humano afeto.
Pude acompanhar
outros sonhos teus ainda (eram tantos, para tão curta vida...). Assim é que vi
a música ocupar cada espaço do teu novo apartamento no Jardim Botânico, os
aparelhos de som e vídeo tri sofisticados, em que ouvias com o maior prazer do
mundo, em meio aos livros mais finos, um Bach da vida, um Chico ou um Teixeirinha
e um Wando. Afinal, pra que excluir o que te fazia bem, o que te permitia sonhar
com a alma mais erudita ou o coração mais brega desse mundo? Ali mesmo, no
Jardim Botânico, tiveste um dia de plena felicidade, com o afilhado Érico,
filho do Geraldo e da Marília: em 2009 tinhas atingido um momento de altíssima
sensibilidade, e descobrias nas crianças o germe dos teus próprios sonhos.
Nesse mesmo ano, em janeiro, estive contigo na casa do Biba e da Helena, e numa
das fotos que fiz apareces (só tuas mãos) fotografando o exato momento em que
César e Rodrigo, então com seus sete meses, pela primeira vez parecia que se
olhavam, olho no olho, reconhecendo que o outro era de fato um outro. Ah, esse tema do outro... Isso mexia com tuas entranhas.
Posso dizer que
estive junto de ti no planejamento de um sonho maior, esse sim, não realizado,
mas arquitetado: escrever as memórias das famílias Fischer e Bueno.
Especialmente a dos Bueno. Nossas completamente inesquecíveis noites de
terça-feira na Tia Faeca e no Jacques foram a semente dessas invencionices, de
um livro que recolhesse aquele mundo do realismo fantástico de Dom Pedrito,
origem da mãe, do casamento dela com nosso pai, das tias, dos primos, dos
amigos que lá ficaram ou lá existiram. Várias vezes ensaiamos verdadeiras
entrevistas, metidos a antropólogos ou a historiadores, ouvindo cada palavra da
Tia Cecília e da Tia Faeca. Onde ficaram essas histórias? Algum de nós irá
juntá-las e te oferecer, mesmo que à distância, as páginas dessas vidas?
Teus filhos, Ina
e Gu (ele, meu querido afilhado; ela, minha companheira de vídeos familiares),
estão fazendo neste blog um pouco (ou
muito) do que gostarias de ter realizado, na escuta tão afetuosa que fazias das
nossas tias pedritenses...
Niltinho, teus
sonhos são nossos sonhos. Não tem volta. Soubeste plantá-los no lugar mais
quente de nossas almas. E eu te sou plenamente grata.
Com imenso
carinho. Com imensa saudade.
Tua
mana Rosa Maria / Julho de 2013,
quatro anos depois.
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